Seria fácil dizer que tudo começou com o coronavírus, mas a verdade é que a desgraça humana já vem de algum tempo atrás. Falemos de desastres naturais que ocorrem devido ao aquecimento global, de guerras alimentadas por interesses políticos, da extinção de fauna e flora. Falemos de misoginia e racismo que conspurcam as entranhas da sociedade de uma forma completamente atroz. Falemos da ascensão de regimes de extrema-direita e do esquecimento global das dores de genocídios. Falemos de tudo isto e depois do coronavírus. Escutemos como o ódio e a xenofobia são perpetrados com a sua bandeira, como países e empresas competem para lucrar com a morte de gente por todo o mundo, como líderes mundiais mentem com todos os dentes que têm na boca, não disfarçando sorrisos que deveriam higienicamente ocultar.
Deste modo, é certo que vivemos aquele que é, possivelmente, um dos tempos mais bizarros da nossa história recente. Um inimigo invisível a olho nu força-nos a uma existência de ecrã. Nunca estivemos tão isoladxs, mas também nunca nos sentimos tão sufocadxs. A nossa vantagem evolutiva de pouco tem servido. Continuamos a definhar e a morrer pelo bicho. Quanto às pessoas que se safam, veem na internet D. Sebastião regressado, envolto na neblina da aurora. Uma multiplicidade de eventos surge para salvar a humanidade que nos resta enquanto sociedade ocidental contemporânea sob o formato de vídeos, live streamings, exposições virtuais, podcasts. Se o Google e o Facebook sabiam bastante sobre a nossa vida, valores políticos, hobbies e tendências sexuais, agora pouco há para revelar. O privado e o íntimo escasseiam. A nuvem suga-nos a existência, enquanto nós meramente cruzamos os dedos para que ela saiba guardar segredos.
EMERGÊNCIA 2020
Ambiente, Humanidade, Antropoceno
O planeamento do EMERGÊNCIA 2020, programa de apoio a artistas contemporâneos emergentes do Município de Torres Novas, ocorreu meses antes de se saber que uma pandemia terrível iria atacar a espécie humana. O título da iniciativa e o tema anual foram escolhidos sem qualquer tipo de conhecimento sobre a doença vindoura, o caos e a mortandade que uma outra forma de vida nos traria. Questionamos a nossa aparente invencibilidade e tornamo-nos vulneráveis, refletindo sobre as consequências de assumir essa mesma vulnerabilidade, tanto como indivíduos ou pessoas que pertencem a determinadas instituições.
O nosso ambiente, que inclui os cenários político, económico e social, encontra-se fundamentalmente alterado.
No ensaio de Donna Haraway, “Tentacular Thinking: Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene”, a autora repensa o Antropoceno como conceito altamente narcisista, egocêntrico (espécie-cêntrico?) por parte dos humanos que o cunharam e que esquecem que a Terra (ou Gaia, para utilizar o termo preferido por Haraway) é uma força devastadora, um agente autotransformador, contingente e dinâmico. É inegável que o coronavírus é parte da natureza. Será esta uma forma de Gaia se ajustar à presença do Anthropos e ao sistema capitalista que caracteriza as economias ocidentais, também criticado por Haraway quando descreve o Capitaloceno? Aceitaremos o Chthuluceno, termo proposto pela autora que considera Gaia como uma entidade primária com um gigantesco poder destrutivo, conceito que nivela as hierarquias de espécies, locais e populações? Saberemos tomar ação por Gaia, fazendo uso da sua fragilidade e porosidade em momentos de desequilíbrio, para potenciar mudanças benéficas para os diversos ecossistemas?
No fundo, o EMERGÊNCIA 2020 surgiu como uma forma de proporcionar a artistas emergentes uma oportunidade de explorarem artisticamente temas do domínio do que é comum a todas as pessoas, tendo evoluído para uma necessidade urgente de responder a grandes questões sobre o que é ser humano no contexto que vivemos atualmente e que impacta, de diversas maneiras, a nossa sobrevivência e quotidiano.
|